domingo, 14 de outubro de 2012

Dos Filósofos

Vê-se que não são juízes e testemunhas imparciais do valor do ideal ascético, esses filósofos! Eles pensam  em si  que lhes importa "o santo"! Pensam no que lhes é mais indispensável: estar livre de coerção, perturbação, barulho, de negócios, deveres, preocupações; lucidez na cabeça; dança, salto e vôo do pensamento; um bom ar, fino, claro, livre, seco, como é o ar das alturas, em que todo animal torna-se mais espiritual e recebe asas; paz em todos os subterrâneos; todos os cães bem amarrados  à corrente; nenhum latido de inimizade e de cerdoso rancor; nenhum verme roedor de ambiçãoferida; vísceras modestas e submissas, diligentes como moinhos, mas distantes;  o coração alheio, além, futuro, póstumo - em suma, eles pensam no ideal ascético como o jovial ascetismo de um bicho que se tornou divino e ao qual nasceram asas, que antes flutua sobre a vida do que nela pousa. Sabe-se quais as três palavras de pompa do ideal ascético:  humildade, pobreza, castidade; observemos de perto as vidas dos grandes espíritos fecundos e  inventivostodas as três serão sempre encontradas até certo grau.  Não,  entende-se, que sejam talvez "virtudes" suas - que  tem essa espécie de homens a ver com virtudes! - mas as condições mais próprias e mais naturais de sua existência  melhor,  de sua fecundidade  mais bela.  Nisto, é bem possível que sua espiritualidade dominante tivesse primeiramente de  pôr freios num orgulho indomável e suscetível e numa sensualidade caprichosa, ou que tivesse a custo mantido sua vontade de "deserto" diante de um pendor ao luxo e ao rebuscamento, e diante de uma pródiga liberalidade de mão e coração. Mas ela o fez, justamente como instinto  dominante,  que impôs suas exigências a todos os demais instintos - ela o faz ainda; não o fizesse, não dominaria. Não há nenhuma "virtude" nisso, portanto. De resto, o  deserto  de que falei, onde se retiram e se isolam os espíritos fortes, de feitio independente - oh, que outro aspecto tem, quando os homens cultos imaginam um deserto! - em ocasiões são eles mesmos o deserto, estes homens cultos. E é certo que os atores do espírito não suportariam absolutamente viver nele - para eles, está longe de ser suficientementeromântico e sírio, suficientemente teatral! É verdade que nele não faltam também os camelos: mas a isto se reduz toda a semelhança. Uma obscuridade voluntária, talvez; um evitar a si  mesmo; uma aversão a barulho, veneração, jornais, influência; um emprego modesto,um cotidiano, algo que esconda mais do que exponha; ocasionalmente, contato com bichos  e aves inofensivos e alegres, cuja visão distraia; montanhas como companhia, mas não mortas,e sim com  olhos  (ou seja, lagos); até mesmo um quarto numa pensão sempre lotada, onde se  esteja seguro de ser confundido com outros, e de poder falar impunemente com qualquer um - isto é "deserto": oh, é solitário o bastante, creiam-me! Quando Heráclito retirou-se para os pátios e colunatas do grande templo de Artemis, este "deserto" era mais digno, admito: por que  nosfaltam  hoje tais templos? (- talvez não nos faltem: penso em meu mais belo quarto de estudo, a  piazza di San Marco,  na primavera naturalmente, pela manhã, entre dez e  doze horas). Mas aquilo a que Heráclito fugiu é ainda o mesmo que atualmente evitamos: o ruído e o palavrório democrático dos efésios, sua política, suas novidades do "Império" (a Pérsia, entenda-se), suas miudezas do "hoje" - pois nós, filósofos, necessitamos descanso de  uma  coisa sobretudo: do "hoje". Nós veneramos o que é tranqüilo, frio, nobre, passado, distante, tudo aquilo em vista do qual a alma não tem de se defender e se encerrar - algo com que se pode falar sem elevar a voz. Ouça-se o timbre de um espírito quando fala: cada espírito tem seu timbre, ama-o. Aquele, por exemplo, deve ser um agitador, quer dizer, uma cabeça oca, vasilha oca: O o que quer que nele entre, sai opacoe amortecido, carregado do eco do grande vazio. Aquele outro quase sempre fala roucamente: teria enrouquecido pensando?  É possível - pergunte-se aos fisiólogos -, mas quem pensa em  palavras,  pensa como orador e não como pensador Cisto revela que ele não pensa ascoisas, os objetos, não pensa objetivamente, mas apenas a propósito das coisas; que na verdade pensa em  si  e em seus ouvintes). Um terceiro é muito insistente, aproxima-se demais, seu hálito nos toca, involuntariamente fechamos a boca, embora nos fale  através de um livro: o tom de seu estilo nos diz a razão - ele não tem tempo, ele mal crê emsi mesmo, precisa falar hoje ou nunca. Mas um espírito seguro de si mesmo fala baixo; busca o ocultamento, deixa que esperem por ele. Reconhece-se um filósofo no fato de evitar três coisas que brilham e fazem barulho: a fama, os príncipes e as mulheres - o que não quer dizer que elas não o procurem. Ele receia a luz demasiado clara: por isso se resguarda de seu tempo, e do "dia" desse tempo. Nisto é como uma sombra: mais o sol se põe, maior ele fica.Quanto à sua "humildade", assim como suporta o escuro, suporta também uma certa dependência, um certo obscurecimento: mais ainda, ele teme ser incomodado pelo raio, recua ante a desproteção de uma árvore só e abandonada, na qual toda intempérie descarrega seu  mau humor, todo mau humor sua intempérie. Seu instinto "maternal", o secreto amorao que nele cresce, mostra-lhe situações em que é dispensado de pensar em si; no mesmo sentido em que até agora o instinto de mãe da mulher conservou a situação dependente da mulher. Em última instância exigem bem pouco esses filósofos, a sua máxima é: "quem possuié possuído" - isto, como tenho de repetir vez por outra, não por virtude, por uma meritória vontade de singeleza e moderação, mas porque o seu senhor supremo assim exige, prudente e inexoravelmente: ele tem em conta somente uma coisa, e apenas para ela junta e  acumula tempo, energia, amor, interesse. Essa espécie de homem não gosta de ser perturbada por inimizades, tampouco por amizades; esquece ou despreza com facilidade. Parece-lhe mau  gosto fazer-se de mártir;  "sofrer pela verdade" - isso deixa para os ambiciosos e heróis de palco do espírito, e para todos os que têm tempo para isso (- eles, os filósofos, têm algoa  fazer  pela verdade). Eles fazem pouco uso das grandes palavras; diz-se que mesmo a palavra "verdade" Ihes repugna: soa grandiloqüente... No que toca, por fim, à castidadedos filósofos, a fecundidade desse tipo de espírito está evidentemente em outra coisa que não  crianças; também em outra parte deve estar a sobrevivência de seu nome, sua pequena imortalidade (ainda mais imodestamente falava-se, entre os filósofos da antiga Índia: "para que descendentes, para aquele cuja alma é o mundo?"). Nisso nada existe de castidade por um escrúpulo ascético ou ódio aos sentidos, como não há castidade quando um atleta ou um jóqueis e abstém de mulheres: assim o deseja, nos períodos de gravidez ao menos, seu instinto dominante. Todo artista sabe como o coito tem efeito nocivo, nos estados de grande tensão e preparação espiritual; entre eles, os mais poderosos e mais seguros nos instintos não necessitam sequer da experiência, da má experiência, para sabê-lo - é o seu instinto "materno" que, em proveito da obra em formação, recorre inapelavelmente a todos os suplementos e reservas de força, de  vigorda  vida animal: a força maior  gasta  então a menor. - Interpretemos agora o caso de Schopenhauer, mencionado acima, conforme estas observações: evidentemente a visão do belo atuava nele como estímulo liberador da  força principal  de sua natureza (a força da reflexão e do olhar aprofundado); de modo que esta explodia e de imediato tomava conta da consciência. Com isso não se deve em absoluto excluir a possibilidade de que a peculiar doçura e plenitude própria do estado estético tenha origem precisamente no ingrediente "sensualidade" (assim como da mesma fonte vem o "idealismo" das moças núbeis) - de que, assim, a sensualidade não seja suspensa quando surge o estado estético, como acreditava Schopenhauer, mas apenas se transfigure e já não entre na consciênciacomo estímulo sexual. (Voltarei uma outra vez a este ponto, com relação a problemas ainda mais delicados da até agora intocada, inexplorada fisiologia da estética.)

Genealogia da Moral, Nietzsche, páginas 42 a 44.


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