O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol do poeta e pintor inglês William Blake
Qual o limite em nosso espírito entre o
céu e o inferno? Em que medida uma crença adotada e defendida com
garras e sangrias fervorosas pode se transmutar em uma grande besta, um
monstro horrendo de dez chifres e sobre estes, dez diademas, o qual irá
devorar seu sol interior, eclipsar a pureza e a ingenuidade do mais
luminoso espírito, destruir a bondade o equilíbrio e o que ainda há de
divino em cada ser?
Em existências tão irregulares e
desiguais quanto os padrões digitais dos dedos de uma mão, crenças e
instituições que deveriam nos religar à uma fonte de águas cristalinas
espirituais, celestes, estas mesmas acabam por ser responsáveis por
desembocarmos no mais lodoso pântano, na mais fétida fossa de águas
paradas e contaminadas de detritos do que há de mais sujo e asqueroso
dentro de nós.
Como reação alguns se levantam
como um monstruoso Dragão Vermelho, temido e odioso sim, mas também
poderoso, violento e dono de sua própria existência mutilada, através do
ódio, rancor, desespero e ferocidade, e, nesta identidade bestial se
arremetem contra toda forma pura vestida de sol que esteja em si mesmo,
ou em outro ser.
Eis o inimigo de nossa mulher
interior, de nossa luz virginal, das maravilhas celestes dos restos
divinos em nós: nossa própria existência destruída e desorientada, fruto
de sucessivas decepções e torturas medievais, mortes interiores
orquestradas pela diferença entre o que nos fizeram acreditar e o que
mostra-se como real.
Porque nosso instinto demoníaco
mais covarde bem o sabe... quando você que é o monstro da história de
terror, é bem menor o risco de que algo saia dos cantos escuros para lhe
pegar.
Às vezes adotamos crenças que com o
passar de nossas vidas, ao longo de sucessivas construções e
reconstruções de nossa existência, acabam por se tornar pedras angulares
para nosso ser. Às vezes estas crenças estão suportando tantas coisas
que de outra forma não conseguiríamos aguentar, que se fossem extirpadas
de nós, todo nosso castelo existencial ruiria abaixo. Nosso ser
desabaria sobre si mesmo em uma assustadora e evidente falta de sentido.
As crenças religiosas, por
exemplo, podem assumir eventualmente esta função em nossas vidas. Alguém
para quem a vida é um catálogo de erros, um conjunto infinito de
angústias e ansiedades, um espaço repleto de ausência de sentido, pode
sair com seu carro do ano, parar em um supermercado e encher seu
carrinho com produtos que nunca vai precisar. Pode alimentar vícios. Ou
preencher isto com uma crença.
Vale dizer e ressaltar: não há
porque algumas pessoas rotularem e julgarem esta situação como certa ou
errada. A natureza da situação não permite isto. Não há nenhum problema
ético envolvido aqui. Trata-se apenas de uma condição existencial que o
sujeito adotou para si com toda sua autonomia para fazer escolhas. É
legítimo.
Ou seja, se o indivíduo quiser se
açoitar até a morte por uma crença, quiser pregar suas mãos e pés em
uma cruz, se desfazer de todas suas posses ou qualquer aparente
excentricidade, não há nada a ser falado ou a ser feito. Nem deve-se
cogitar isto, afinal o indivíduo provavelmente estará se realizando
assim, existencialmente estará tentando se completar.
Mas nem sempre é assim.
Por
vezes certas pessoas adotam para si crenças que nada têm a ver consigo.
Crenças que contrariam sua história de vida, a construção de sua
personalidade, entram em conflito com outras crenças adotadas
anteriormente, ou simplesmente com seus instintos naturais, seus
talentos mais íntimos, sua própria essência.
O acolhimento de um sistema de
crenças nesta situação se dá muitas vezes ferindo frontalmente nosso
direito de escolha desde a infância, quando já nascemos em uma cultura e
uma sociedade que nos impõe sumariamente os valores de uma religião
vigente. Falsa liberdade, falsas escolhas: a criança tem que ser livre
para escolher desde cedo suas convicções, desde que meu filho ou filha não vire um pagão, um satanista, um homossexual,...
Se esta imposição não é clara
para quem sofre a esclerose de já ter se acostumado com a falácia de
liberdade de culto e crença em uma sociedade cujos valores são
determinados por religiões segregacionistas e repressoras, imaginem se a
situação abaixo seria aceita com naturalidade pelos pais zelosos da
educação de seus cordeirinhos:
Qual é o problema? Não defendemos que vivemos em uma sociedade laica com liberdade de crença e culto?
Então crescemos com estes valores
impostos por uma correspondente teologia, com seus mitos criacionistas e
livros de verdades reveladas, e isto naturalmente fará parte de nossas
vidas.
Para muitos acaba se
tornando como um objeto estranho que o corpo acabou assimilando para si,
um implante cibernético, que embora muitas vezes monstruoso e
antinatural, pode ser usado para finalidades práticas, para se sentir
forte, e até mesmo para oprimir. Nada mais gostoso do que, ao ouvir
ideias incômodas, colocar o dedo no rosto de nosso interlocutor
ameaçadoramente e dizer: "mas a Bíblia é clara e de acordo com ela, o que você diz está errado". Não há nada mais confortável do que "saber" que andamos ao lado da "verdade".
Mas como eu dizia antes, mesmo adotando
este recurso para ter algum status de importância no mundo, muitas
vezes a essência da pessoa não nem nada a ver com aqueles ensinamentos
ou verdades. E aí se formam personalidades bizarras e deformadas que
propiciam incidentes hilários ou trágicos, ao gosto do freguês.
Um
caso engraçado foi o de um indivíduo que tentava converter meu irmão em
praça pública com a Bíblia na mão. Ele dizia fervorosamente: "Sabe qual
a razão das desgraças do mundo, meu jovem?! É falta de Deus no coração!
É falta de Jesus no coração!!!" Subitamente o religioso pára sua
pregação, quase deixa a Bíblia cair por terra e balbucia hipnotizado ao
olhar para o lado: "Meu, viu aquela morena que passou ali?...que
gostosa..."
Este tipo de conflito é o mínimo que
pode ocorrer. Pessoas que fazem ou sentem necessidades naturais de ser
ou fazer coisas completamente contraditórias às verdades reveladas,
ainda assim usam estas crenças como uma espécie de expiação, de muleta
existencial para suportar suas vidas. Não conseguem perceber o quanto os
valores que pratica(quando consegue) são paradoxais em relação ao seu
ser, a não ser quando sua vida lhe mostra tragicamente as consequências
disto.
Muitas vezes aceita-se a
imposição sem questionamentos e tenta-se suprimir a todo custo as
inclinações naturais. É o caso dos bons religiosos por exemplo, que
simplesmente tentam seguir à risca todos os dogmas, todos os parâmetros,
todas as linhas de sua religião. Praticam sinceramente. Tentam não
errar como seres humanos. Tentam não pecar.
Tudo o que sua mente, seu corpo e
sua alma lhe sinalizam de diferente é controlado abafado ou eliminado
com fé e convicção de que, o caminho da retidão é tão estreito e tão
cortante quanto o fio de uma navalha. Todo sacrifício é feito com
alegria, amor e dedicação. E isto lhes completa realmente. Lhes realiza
como seres humanos, afinal escolheram um dos lados. O do bem.
Até que...
por
algum infeliz fato em sua vida, estas crenças são abaladas em sua
estrutura. Por alguma razão é demonstrado que os ídolos e ícones de sua
vida espiritual na verdade... tem "pés de barro"(quando não mesmo cascos de bode).
Há muitos motivos para haver
decepções acerca de religiões institucionalizadas feitas por homens.
Desde fundamentos que vão contra a própria existência do ser humano, até
distorções cada vez mais maliciosas de seus seguidores. Pode parecer
uma mera crítica intelectual, mas esta questão está entranhada em todo
crime cometido em nome destas instituições.
E em nome de Deus...
Quando a decepção amarga em relação a
tudo o que você acalentou durante uma vida desce pela garganta abaixo,
quando você se sente roubado no mais íntimo, a luz da culpa e do
esclarecimento cegam seus olhos, e não há para onde fugir da própria
vergonha, o ser morre.
Em seu lugar se cria um réptil
tão asqueroso quanto forte, tão ofuscado de ódio e violência quanto
poderoso. Forjado no fogo das piras das bruxas, alimentado pelo sangue
dos injustiçados em nome de um Deus, animado pela dor dos que clamaram
por um alento e em troca receberam uma lâmina rasgando suas entranhas, o
psiquismo humano se transmuta no Leviatã, na besta de mil nomes e
propagador das mil desgraças. Nos tornamos como o Grande Dragão Vermelho
de Blake.
Desta vez o Dragão sobrepujará a Virgem vestida de Sol e não o contrário. Obra de William Blake.
Assim como no romance de Thomas Harris,
um ser doentio e reprimido ganha vida para imprimir em todos à sua
volta ao menos uma ideia pálida da dor que carrega consigo.
Fonte: Endelion
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