domingo, 23 de dezembro de 2012

O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol

 O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol do poeta e pintor inglês William Blake


Qual o limite em nosso espírito entre o céu e o inferno? Em que medida uma crença adotada e defendida com garras e sangrias fervorosas pode se transmutar em uma grande besta, um monstro horrendo de dez chifres e sobre estes, dez diademas, o qual irá devorar seu sol interior, eclipsar a pureza e a ingenuidade do mais luminoso espírito, destruir a bondade o equilíbrio e o que ainda há de divino em cada ser?

Em existências tão irregulares e desiguais quanto os padrões digitais dos dedos de uma mão, crenças e instituições que deveriam nos religar à uma fonte de águas cristalinas espirituais, celestes, estas mesmas acabam por ser responsáveis por desembocarmos no mais lodoso pântano, na mais fétida fossa de águas paradas e contaminadas de detritos do que há de mais sujo e asqueroso dentro de nós.

Como reação alguns se levantam como um monstruoso Dragão Vermelho, temido e odioso sim, mas também poderoso, violento e dono de sua própria existência mutilada, através do ódio, rancor, desespero e ferocidade, e, nesta identidade bestial se arremetem contra toda forma pura vestida de sol que esteja em si mesmo, ou em outro ser. 

Eis o inimigo de nossa mulher interior, de nossa luz virginal, das maravilhas celestes dos restos divinos em nós: nossa própria existência destruída e desorientada, fruto de sucessivas decepções e torturas medievais, mortes interiores orquestradas pela diferença entre o que nos fizeram acreditar e o que mostra-se como real. 

Porque nosso instinto demoníaco mais covarde bem o sabe... quando você que é o monstro da história de terror, é bem menor o risco de que algo saia dos cantos escuros para lhe pegar. 

Às vezes adotamos crenças que com o passar de nossas vidas, ao longo de sucessivas construções e reconstruções de nossa existência, acabam por se tornar pedras angulares para nosso ser. Às vezes estas crenças estão suportando tantas coisas que de outra forma não conseguiríamos aguentar, que se fossem extirpadas de nós, todo nosso castelo existencial ruiria abaixo. Nosso ser desabaria sobre si mesmo em uma assustadora e evidente falta de sentido.

As crenças religiosas, por exemplo, podem assumir eventualmente esta função em nossas vidas. Alguém para  quem a vida é um catálogo de erros, um conjunto infinito de angústias e ansiedades, um espaço repleto de ausência de sentido, pode sair com seu carro do ano, parar em um supermercado e encher seu carrinho com produtos que nunca vai precisar. Pode alimentar vícios. Ou preencher isto com uma crença.

Vale dizer e ressaltar: não há porque algumas pessoas rotularem e julgarem esta situação como certa ou errada. A natureza da situação não permite isto. Não há nenhum problema ético envolvido aqui. Trata-se apenas de uma condição existencial que o sujeito adotou para si com toda sua autonomia para fazer escolhas. É legítimo.

Ou seja, se o indivíduo quiser se açoitar até a morte por uma crença, quiser pregar suas mãos e pés em uma cruz, se desfazer de todas suas posses ou qualquer aparente excentricidade, não há nada a ser falado ou a ser feito. Nem deve-se cogitar isto, afinal o indivíduo provavelmente estará se realizando assim, existencialmente estará tentando se completar.

Mas nem sempre é assim. 
Por vezes certas pessoas adotam para si crenças que nada têm a ver consigo. Crenças que contrariam sua história de vida, a construção de sua personalidade, entram em conflito com outras crenças adotadas anteriormente, ou simplesmente com seus instintos naturais, seus talentos mais íntimos, sua própria essência.

O acolhimento de um sistema de crenças nesta situação se dá muitas vezes ferindo frontalmente nosso direito de escolha desde a infância, quando já nascemos em uma cultura e uma sociedade que nos impõe sumariamente os valores de uma religião vigente. Falsa liberdade, falsas escolhas: a criança tem que ser livre para escolher desde cedo suas convicções, desde que meu filho ou filha não vire um pagão, um satanista, um homossexual,...

Se esta imposição não é clara para quem sofre a esclerose de já ter se acostumado com a falácia de liberdade de culto e crença em uma sociedade cujos valores são determinados por religiões segregacionistas e repressoras, imaginem se a situação abaixo seria aceita com naturalidade pelos pais zelosos da educação de seus cordeirinhos:


Qual é o problema? Não defendemos que vivemos em uma sociedade laica com liberdade de crença e culto?
Então crescemos com estes valores impostos por uma correspondente teologia, com seus mitos criacionistas e livros de verdades reveladas, e isto naturalmente fará parte de nossas vidas.
Para muitos acaba se tornando como um objeto estranho que o corpo acabou assimilando para si, um implante cibernético, que embora muitas vezes monstruoso e antinatural, pode ser usado para finalidades práticas, para se sentir forte, e até mesmo para oprimir. Nada mais gostoso do que, ao ouvir ideias incômodas, colocar o dedo no rosto de nosso interlocutor ameaçadoramente e dizer: "mas a Bíblia é clara e  de acordo com ela, o que você diz está errado". Não há nada mais confortável do que "saber" que andamos ao lado da "verdade".
Mas como eu dizia antes, mesmo adotando este recurso para ter algum status de importância no mundo, muitas vezes a essência da pessoa não nem nada a ver com aqueles ensinamentos ou verdades. E aí se formam personalidades bizarras e deformadas que propiciam incidentes hilários ou trágicos, ao gosto do freguês.
Um caso engraçado foi o de um indivíduo que tentava converter meu irmão em praça pública com a Bíblia na mão. Ele dizia fervorosamente: "Sabe qual a razão das desgraças do mundo, meu jovem?! É falta de Deus no coração! É falta de Jesus no coração!!!" Subitamente o religioso pára sua pregação, quase deixa a Bíblia cair por terra e balbucia hipnotizado ao olhar para o lado: "Meu, viu aquela morena que passou ali?...que gostosa..."
Este tipo de conflito é o mínimo que pode ocorrer. Pessoas que fazem ou sentem necessidades naturais de ser ou fazer coisas completamente contraditórias às verdades reveladas, ainda assim usam estas crenças como uma espécie de expiação, de muleta existencial para suportar suas vidas. Não conseguem perceber o quanto os valores que pratica(quando consegue) são paradoxais em relação ao seu ser, a não ser quando sua vida lhe mostra tragicamente as consequências disto.

Muitas vezes aceita-se a imposição sem questionamentos e tenta-se suprimir a todo custo as inclinações naturais. É o caso dos bons religiosos por exemplo, que simplesmente tentam seguir à risca todos os dogmas, todos os parâmetros, todas as linhas de sua religião. Praticam sinceramente. Tentam não errar como seres humanos. Tentam não pecar.

Tudo o que sua mente, seu corpo e sua alma lhe sinalizam de diferente é controlado abafado ou eliminado com fé e convicção de que, o caminho da retidão é tão estreito e tão cortante quanto o fio de uma navalha. Todo sacrifício é feito com alegria, amor e dedicação. E isto lhes completa realmente. Lhes realiza como seres humanos, afinal escolheram um dos lados. O do bem.
Até que...
por algum infeliz fato em sua vida, estas crenças são abaladas em sua estrutura. Por alguma razão é demonstrado que os ídolos e ícones de sua vida espiritual na verdade... tem "pés de barro"(quando não mesmo cascos de bode).

Há muitos motivos para haver decepções acerca de religiões institucionalizadas feitas por homens. Desde fundamentos que vão contra a própria existência do ser humano, até distorções cada vez mais maliciosas de seus seguidores. Pode parecer uma mera crítica intelectual, mas esta questão está entranhada em todo crime cometido em nome destas instituições.

E em nome de Deus...
Quando a decepção amarga em relação a tudo o que você acalentou durante uma vida desce pela garganta abaixo, quando você se sente roubado no mais íntimo, a luz da culpa e do esclarecimento cegam seus olhos, e não há para onde fugir da própria vergonha, o ser morre.

Em seu lugar se cria um réptil tão asqueroso quanto forte, tão ofuscado de ódio e violência quanto poderoso.  Forjado no fogo das piras das bruxas, alimentado pelo sangue dos injustiçados em nome de um Deus, animado pela dor dos que clamaram por um alento e em troca receberam uma lâmina rasgando suas entranhas, o psiquismo humano se transmuta no Leviatã, na besta de mil nomes e propagador das mil desgraças. Nos tornamos como o Grande Dragão Vermelho de Blake.
Desta vez o Dragão sobrepujará a Virgem vestida de Sol e não o contrário. Obra de William Blake.

Assim como no romance de Thomas Harris, um ser doentio e reprimido ganha vida para imprimir em todos à sua volta ao menos uma ideia pálida da dor que carrega consigo. 

Fonte: Endelion

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